Sobre o questionamento necessário do sindicalismo contemporâneo: algumas notas soltas
30/10/2010 por Henrique Sousa
O capitalismo globalizado e comandado pelo sistema financeiro e as profundas mudanças políticas no final do século passado exigem a profunda revisão e renovação dos modelos sindicais e uma atenção maior à dimensão europeia e global da unidade de acção dos trabalhadores. Essa unidade de acção é hoje incompatível com a manutenção de blocos político-ideológicos no plano sindical, à escala mundial, que reproduzem alinhamentos passados, conceitos ultrapassados e equilíbrios geopolíticos desaparecidos.
O debate do contributo da CGTP, com o seu sindicalismo combativo e os seus valores próprios, para o fortalecimento da Confederação Sindical Internacional (em que a sua maioria interna recusou a filiação) e para a unidade de acção europeia e global, tem por isso que continuar. O isolamento ou o alinhamento com um “cadáver adiado” como a FSM não é caminho nem tem futuro e serve apenas visões instrumentais e partidárias do sindicalismo, que são parte legítima da história do movimento operário, mas não respondem aos desafios e problemas actuais. Tais visões perderam sentido e eficácia na representação do trabalho face à mudança qualitativa do capitalismo.
O capitalismo mudou nas três últimas décadas.
Deixou de assentar na economia real e na coligação entre capital industrial e capital financeiro (bancos). Passou a ser comandado por um sistema financeiro globalizado (fundos especulativos, bancos de investimento, agências de notação, paraísos fiscais, etc.), instalado na liberdade de circulação de capitais, que subordina e manipula a economia real, que instrumentaliza e rentabiliza eficazmente as novas tecnologias de informação ao serviço duma economia de casino, que ameaça de modo predatório a sustentabilidade do planeta, que alterou profundamente a organização do trabalho e desequilibrou a relação de forças sociais.
A narrativa deste capitalismo “renovado”, pretensamente não ideológica, é o neoliberalismo, que procura fundir-se com os sistemas políticos demoliberais, corroendo-os por dentro, reduzindo a democracia a modelos formais, destruindo o compromisso social do pós-guerra que legitimou o chamado Estado Social e privilegiando crescentemente poderes fácticos não eleitos e incontrolados. As leis da oferta e da procura, da formação dos preços e a “mão invisível” dos mercados, de que falou Adam Smith, não funcionam do modo que foi teorizado pelo liberalismo do século XIX nos mercados financeiros e no capitalismo especulativo do século XXI.
E os sindicatos?
Os sindicatos e os trabalhadores, permanentes, precários ou desempregados, precisam de responder a esta profunda mudança qualitativa renovando práticas, orientações, modelos organizativos, modos de representação de um mundo do trabalho agora mais complexo e mais fragmentado, rompendo com modelos burocratizados de sindicalismo, sustentados ou num discurso radical-conservador ou num discurso negocista, diferentes, mas ambos conformados de facto com o statu quo. É mais que tempo de ousar questionar criticamente os modelos sindicais praticados no século XX antes da emergência e domínio do modelo de capitalismo global neoliberal.
Esta reflexão e esta busca de respostas novas têm que ser feita dentro e fora do movimento sindical. De baixo para cima e de cima para baixo. Fundindo a experiência e o activismo laborais com a contribuição dos investigadores sociais que não se deixaram aprisionar no pensamento único neoliberal dominante nas universidades. Em nome da emergência de um sindicalismo autónomo, combativo e transformador, que saiba proteger o melhor da herança histórica do movimento operário dos séculos XIX e XX, mas que saiba alargar a representação e construir novos modelos de solidariedade e de acção colectiva na mobilização social, na negociação colectiva e na relação com os sistemas políticos e com os actores partidários.
O 40º aniversário da fundação da CGTP-IN, que ocorre este ano, parece constituir, neste domínio, uma oportunidade perdida. Certamente restará dessa celebração um esforço valioso de registo e testemunho sobre a sua história e a sua fundação. Mas seria certamente exigível que a mais representativa, histórica e combativa central sindical assumisse corajosamente o questionamento crítico dos recuos na sindicalização e participação, das ineficiências, dos bloqueios e dificuldades do sindicalismo contemporâneo. Em nome do seu futuro.
Os ventos não sopram porém nessa direcção. A sua maioria política privilegia o conforto situacionista do controlo de um aparelho instalado à ousadia de abrir portas e janelas para um debate estimulante e aberto com os trabalhadores e a sociedade sobre o sindicalismo que é preciso para enfrentar este capitalismo global, errático e predador.
Haja quem questione e desbrave novos caminhos!
Há uma inexorável transição em curso de gerações de sindicalistas e outros activistas do mundo do trabalho. Importa que todos quantos são portadores da experiência e de saberes alicerçados num combate generoso de décadas e compreendem a necessidade da renovação e revitalização das organizações de classe dos trabalhadores, nas suas práticas, nas suas orientações e nos seus actores, não desistam, aqui e agora, de investir urgentemente, em conjunto com as novas gerações de trabalhadores precários, numa reflexão crítica partilhada que abra novos horizontes ao sindicalismo e assegure umas passagem sólida de testemunhos e de valores. Para impedir uma passagem de testemunho viciada. Para que sindicatos e Estado Social não se convertam a prazo em instituições residuais ou desvalorizadas pelas gerações futuras, mas sejam parte valiosa das suas vidas, dos seus combates e do seu futuro.
Isto implica certamente assumir, para muitos activistas e outros estudiosos do mundo do trabalho, escolhas morais e sacrifícios pessoais, incompreensões e riscos face aos aparelhos instalados de poder e aos dogmas sacralizados e frequentemente desligados do real. Implica dar o corpo ao manifesto onde é preciso, como na greve geral de 24 Novembro, mas não abdicar da reflexão crítica capaz de abrir caminho a um novo sindicalismo autónomo e combativo, capaz de combinar a mobilização social com mais eficácia negocial e na relação com o sistema político. Não esquecendo que, no processo histórico, as minorias críticas foram sempre o fermento e a semente portadores das mudanças libertadoras e transformadoras.
A Conferência Sindical Internacional convocada por 12 sindicatos para 6 de Novembro, em Lisboa, e todas as iniciativas que estimulem este debate e esta busca urgente de novos caminhos para dar aos sindicatos mais eficácia e mais capacidade de representação do mundo do trabalho nos mais duros combates que se avizinham, são, por isso, bem-vindas.
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